|
IDÉIAS DE UM RABINO REBELDE
Entrevista realizada por Gilberto Scofield Jr. paraa Revista Época
em 27.07.98
Nilton Bonder, líder da comunidade judaica no Rio, defende em
livro o "lado bom da traição"
Época: Em seu livro A Alma Imoral o senhor defende a idéia
de que existe um lado positivo na traição e que ela é
inevitável e bem-vinda. Como uma atitude que a sociedade condena
tanto pode ser considerada positiva?
Nilton Bonder: Na minha opinião, traições e transgressões
são a mesma coisa. Desde que sejam atitudes revolucionárias.
Toda traição vai contra um padrão que representa
o status quo, a ordem geral. Não estou falando da traição
conjugal, uma aventura amorosa que uma pessoa tem por qualquer problema
no casamento. Estamos falando do espírito maior da traição,
que é o de romper com o padrão moral vigente, transgredir.
Trair é uma atitude inevitável do ser humano. Até
a Bíblia prevê a possibilidade da traição na
história de Adão e Eva.
Época: Foi assim no episódio bíblico entre Adão,
Eva e a maçã no paraíso?
Bonder: Exato. Deus pôs Adão e Eva no mundo e deu a eles
o único objetivo do homem no planeta - "multiplicai-vos".
Mas Deus também mandou que não comessem determinado fruto,
ou seja, havia uma norma que não deveria ser rompida. Por que Deus
faria isso? Porque transgredir faz parte da natureza humana. E foi o que
aconteceu, como todos sabem.
Época: O senhor acredita que a missão de mulheres e homens
é procriar e transgredir?
Bonder: Estamos reformulando os conceitos de corpo e alma. O pecado original,
por exemplo, não foi uma tentação do corpo, como
nos faz crer a interpretação cristã. Foi uma tentação
da alma. É a alma que trai, e não o corpo. Adão e
Eva desobedeceram a Deus porque foram tentados pela alma. Ao corpo cabia
seguir o mandamento de procriar. Como a alma traiu, o corpo foi empurrado
a outro território. Para sobreviver num lugar que não era
seu hábitat, o corpo criou a moral como meio de se proteger. Essa
proteção criou-lhe roupas para cobrir a nudez, fez do ato
de parir e da morte uma consciência. No livro, explico que todas
as vezes em que o corpo insiste em recriar o éden seguindo apenas
seu desejo a alma contra-ataca com sua imoralidade.
Época: O senhor considera Cristo um traidor?
Bonder: A história religiosa é feita da tensão entre
tradição e traição. O contrário da
traição é a tradição. A história
de Jesus Cristo é a de um transgressor, alguém que desobedeceu
normas, foi contra o que era estabelecido como o certo. Cristo foi um
revolucionário que defendeu o que todos rejeitavam: os pobres,
as prostitutas, os famintos, os doentes. Depois de sua morte, foi a sociedade
que o transformou em santo.
Época: O senhor é um rabino fora dos padrões. É
jovem, ex-surfista, escritor de livros de sucesso nos quais aborda de
maneira pouco convencional as tradições do povo judeu. Como
a ortodoxia judaica encara a sua traição?
Bonder: Confesso que tenho um pouco de medo da forma como os mais conservadores
reagirão ao meu livro. As tradições são criadas
para proteger as pessoas. Mas, para evoluir, precisamos romper com determinadas
regras e dar um passo à frente. É preciso conhecer a tradição
e, depois, traí-la. Parte do que escrevi tem um pouco de minhas
próprias experiências de vida, de minhas próprias
traições, como quando decidi ser rabino em vez de engenheiro.
O livro pode incomodar porque coloco a tradição judaica
num tabuleiro diferente. Mas ninguém pode dizer que o livro está
errado ou que não diz a verdade.
Época: Os grandes nomes da tradição judaica foram
traidores?
Bonder: Foram. De uma forma ou de outra, eles transgrediram as regras
e criaram novos e melhores padrões de comportamento. Uma coisa
interessante nas genealogias bíblicas é a ascendência
do Messias, que é herdeiro de uma linhagem múltipla, marcada
por profundas transgressões em que não faltam episódios
de incesto e uniões proibidas. Veja a família de Lot, por
exemplo, que escapa à destruição de Sodoma e Gomorra.
As filhas de Lot achavam que o mundo ia acabar e, para preservar a raça
humana, decidem engravidar do próprio pai, gerando Moab e Ben-Ammi.
Note que a preservação da espécie fica salvaguardada
por uma traição às leis. Mas deu início a
uma das linhagens da descendência de Davi e do Messias.
Época: Como o senhor vê aquela que deve ser a traição
mais conhecida do mundo, a de Judas?
Bonder: A personificação de Judas como sendo o próprio
judeu ou a própria Judéia propiciou a identificação
do judeu como um traidor, um delator. Muita gente condena os judeus dizendo
que foram eles quem mataram Jesus ao crucificá-lo, libertando Barrabás.
Mas Jesus era judeu e foi crucificado porque era um transgressor aos olhos
da época. Ele não defendia o que era o correto para muitos:
a tradição, a família e a propriedade.
Época: O senhor vê um adúltero como um transgressor?
Bonder: Não. O adúltero não está transformando
a sua vida, melhorando-a. Ao contrário. Ele quer manter indefinidamente
o mesmo esquema - ter um parceiro ou uma parceira em casa, mantendo vários
na rua. O traidor do bem é um transgressor da ordem, que rompe
normas para criar um estilo de vida melhor que o anterior. E o adúltero
não faz isso.
|